Janaina Chiaradia - Jurista, Mestre em Direito, Professora, Palestrante e Escritora.
24 de janeiro de 2020, 14:14
In loco: transmitindo informações e compartilhando experiências
Da série: Animais não são coisas
Por Vicente de Paula Ataide Junior
Iniciando o fim de semana, e uma matéria, da série que nos remete a muitas reflexões, que nos faz mudar alguns sentidos da vida, e ainda, aprimorar nossos valores, com tal expectativa, passamos as escritas do amigo, Vicente Ataide, sempre nos presenteando com seus ensinamentos:
ANIMAIS NÃO SÃO COISAS
Podem os animais demandar seus direitos em juízo?
Vicente de Paula Ataide Junior[1]
Imagine-se um cão, vítima de maus-tratos por alguém inescrupuloso, o qual, em função da violência, necessita de tratamento de saúde vitalício, além de um aparelho protético, que lhe restabeleça a possibilidade de locomoção.
Mas o tutor do animal não tem condições financeiras para pagar essas despesas médico-veterinárias.
Qualquer advogado, desde logo, cogitaria em ajuizar uma ação de reparação de danos contra o agressor do cão, fundada em danos à propriedade semovente. É o caminho tradicional, pensado com base no Código Civil.
Mas, o que garante que o “proprietário” do cão vai aplicar o valor da indenização para o tratamento do animal? O dinheiro recebido, afinal, pertence ao “dono” do animal, autor da demanda, lesado pela conduta ilícita do terceiro. Nesse caso, o animal teria que contar com a compaixão ou a sensibilidade alheia.
Segundo o Direito Animal,[2] o titular do direito à reparação de danos é o próprio animal. Foi o cão a vítima da violência e do sofrimento. Os danos pessoais foram por ele diretamente experimentados, pois é um ser senciente,[3] não uma coisa ou um objeto inanimado.
Justamente porque os animais são seres sencientes é que a Constituição Federal brasileira proíbe, expressamente, quaisquer práticas cruéis contra animais (art. 225, §1º, VII).[4]
A mesma razão levou a Lei paraibana 11.140, de 2018, que instituiu o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba, a estabelecer, dentre outros direitos subjetivos, que “Todo animal tem o direito: I – de ter as suas existências física e psíquica respeitadas; II – de receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida; III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar; IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados; V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador” (art. 5º).[5]
Ora, se os animais possuem direitos subjetivos catalogados em lei, a violação desses direitos gera o direito à reparação, o qual, inevitavelmente, deve ser dar por sentença judicial, após o regular e adequado processo civil.
Pelo princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, CF), sabemos que todo titular de direitos subjetivos tem o direito de defendê-los em juízo, perante o Poder Judiciário: em regimes democráticos, a tutela jurisdicional é inafastável.
Em outras palavras, todo titular de direitos substantivos tem capacidade de ser parte em processo judicial, sem o que a garantia de acesso à justiça seria eficaz e sem utilidade prática.[6]
Reconhecendo-se a capacidade de ser parte do animal, ele próprio poderá demandar o agressor em juízo.
Em termos gráficos:
Animais são sujeitos de direitos
↓
Todo sujeito de direitos tem acesso à Justiça
(art. 5º, XXXV, CF88)
↓
Animais têm acesso à Justiça
↓
Animais têm capacidade de ser parte
↓
Animais podem demandar em juízo
Mas, como se pode intuir, não poderá o animal ir sozinho a juízo, pelas próprias patas: os animais, como as crianças humanas ou como qualquer outro humano incapaz, não detêm capacidade processual, devendo ser representados ou assistidos em juízo.[7]
Quem terá poderes para representar ou assistir um animal em juízo, auxiliando-os na defesa de seus direitos subjetivos?
Segundo o art. 2º, §3º do Decreto 24.645/1934, assinado por Getúlio Vargas, ainda parcialmente vigente, “Os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros das sociedades protetoras de animais”.[8]
Assim, no caso em análise, o animal será assistido em juízo pelo seu tutor (o “substituto legal” referido pelo Decreto 24.645/1934), em processo no qual intervirá, necessariamente, o Ministério Público (art. 178, III, CPC), como fiscal da ordem jurídica, garantindo-se a proteção do incapaz. Competirá ao tutor, como assistente do animal-vítima, contratar o advogado que patrocinará a causa ou obter a representação judicial por meio da Defensoria Pública.
Nas hipóteses em que o animal não tenha tutor ou representante legal, poderá o Ministério Público (e também a Defensoria Pública, segundo a atual Constituição) ou entidade de proteção animal (as “sociedades protetoras dos animais”) atuar como assistente em juízo.
Evidentemente, na ação proposta poderá ser requerida a tutela provisória de urgência, nos termos do Código de Processo Civil (arts. 294 e seguintes), para se obter, desde logo, o imprescindível aparelho ortopédico, além do pensionamento mensal para custear as despesas médico-veterinárias mais prementes.
Em caso de procedência do pedido, a indenização paga será administrada pelo tutor, em proveito exclusivo do animal,[9] com dever de prestar contas em juízo.[10]
Talvez se objete que o mesmo resultado poderia ser obtido por ação civil pública, evocando-se fundamentos de Direito Ambiental, como a proteção do meio ambiente ou da “fauna”. Não parece que assim o seja. Em primeiro lugar, porque, para a ação civil pública, a legitimação ativa é limitada,[11] impossibilitando-se a iniciativa do próprio tutor do animal, o que reduz significativamente o acesso à justiça pelos animais, sem falar das dificuldades em se ajustar o objeto da ação às causas abrangidas pelo art. 1º da Lei 7.347/1985. Em segundo lugar, porque a questão de fundo não trata da função ecológica do cão, pelo que o Direito Ambiental, por si só, é insuficiente.
As ações indenizatórias propostas por animais, devidamente assistidos em juízo, bem em breve ocuparão o cenário judiciário brasileiro. Animais não são coisas. São sujeitos de direitos fundamentais, os quais, uma vez violados, devem ser reparados em juízo. Por isso, não se pode negar que animais detêm capacidade de ser parte. O Decreto 24.645/1934, ainda em vigor, aponta quem serão os representantes/assistentes dos animais em juízo.
Com tais demandas propostas e aceitas pelos juízes – não por compaixão, mas por direito – respostas adequadas serão oferecidas a certos dilemas da proteção animal: como garantir recursos para tratar animais maltratados, sejam os abandonados, sejam aqueles cujos tutores são desprovidos de recursos financeiros suficientes? Como pagar as despesas médico-veterinárias necessárias?
O advogado animalista que propuser a primeira demanda em nome de um animal entrará para a história: da Advocacia, do Direito Animal e da construção de um mundo mais justo para todos, independentemente da espécie.
Aguardem as próximas informações a respeito de algo tão relevante: o direito animal!
Registro a obra de suma relevante de coordenação de Vicente Ataide, lançada recentemente, no qual, o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba ( A Positivação dos Direitos Fundamentais Animais), é destacado:
Um ótimo fim de semana,
Deus abençoe,
Abraços,
Janaina Chiaradia
[1] Professor Adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor e Coordenador do Curso de Especialização em Direito Animal da ESMAFE-PR/UNINTER. Juiz Federal no Paraná. Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/8067162391395637>. Email: vicente.junior@ufpr.br. Portal: http://www.animaiscomdireitos.ufpr.br
[2] Pode-se conceber o Direito Animal como “o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica” (ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018. p. 50).
[3] Segundo a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (2012) – elaborado por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos reunidos na Universidade de Cambridge/Reino Unido –, “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos.” Conferir o texto original, em inglês, disponível em: <http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf>. Acesso em: 4. abr. 2018.
[4] Para uma visão panorâmica do Direito Animal, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018.
[5] Para saber mais sobre essa Lei Estadual – a primeira a catalogar direitos fundamentais para animais –, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula (coord.). Comentários ao Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba: a positivação dos direitos fundamentais animais. Curitiba: Juruá, 2019.
[6] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 20 ed. v.1. Salvador: Juspodivm, 2018. p. 369.
[7] Segundo o art. 71 do CPC, “O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei.”
[8] Sobre a relevância e a vigência desse Decreto, consultar: ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Introdução ao Direito Animal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador, v. 13, n. 3, p. 48-76, set./dez. 2018. p. 55-56; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. A natureza no direito brasileiro: coisa, sujeito ou nada disso. Caderno jurídico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. ano 1, v. 1. n. 02, p. 149-169, São Paulo, jul. 2001. p. 155; ARAÚJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Almedina, 2003. p. 288-302.
[9] Segundo o art. 1741 do Código Civil, aqui aplicado por analogia, “incumbe ao tutor, sob a inspeção do juiz, administrar os bens do tutelado, em proveito deste, cumprindo seus deveres com zelo e boa-fé.”
[10] Também por analogia é possível evocar aqui o art. 1.755 do Código Civil: “Os tutores, embora o contrário tivessem disposto os pais dos tutelados, são obrigados a prestar contas da sua administração.”
[11] Segundo o art. 5º da Lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública): “Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.”
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