"OS RISCOS NA COMPRA E VENDA DE BENS IMÓVEIS - FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL E SUA PRESUNÇÃO JURE ET DE JURE DIANTE DA INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 375 DO STJ"
Debora Cristina de Castro da Rocha[1]
Edilson Santos da Rocha[2]
O dever de cautela deve ser “redobrado” pelo comprador de bem imóvel quando constatada a existência de certidão positiva de débitos tributários em nome do vendedor, especialmente porque nestes casos a dívida poderá recair sobre o imóvel.
Todavia, um ponto fundamental deve ser considerado antes da celebração do negócio jurídico, pois a fraude a execução pode gerar um sério impacto e um prejuízo imenso, especialmente quando se estiver diante de uma execução fiscal, ainda que na matrícula do imóvel não tenha sido averbada a ação, a despeito do contido no artigo 54, IV da Lei 13.097 de 2015, com a nova redação dada pela Lei 13.382 de 2022, que assim dispõe:
Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
(...)
“IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”
Pois, quando se trata de execução fiscal, assim como as demais execuções, não se pode perder de vista que, a sua atuação se dá no plano da eficácia, conduzindo, portanto, à ineficácia da alienação ou oneração do bem, considerando-se fraudulentas as alienações efetuadas pelo devedor fiscal “após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa” (encerrando presunção jure et de jure), sem a reserva de meios para quitação do débito (quando o devedor não deixa patrimônios ou bens satisfatórios para garantir e liquidar o débito da obrigação pecuniária), independentemente dos aspectos subjetivos da alienação e de não ter sido averbada à margem da matrícula do imóvel, nos termos da supramencionada disposição legal.
Assim, tendo ocorrido a alienação do bem do devedor após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa, presume-se de forma absoluta, nesta hipótese, a ocorrência da fraude à execução fiscal, a justificar a declaração da ineficácia da alienação do bem do devedor em relação ao débito executado, o que não impede a sua penhora ou indisponibilidade.
No que concerne ao instituto da fraude à execução fiscal, cabe inicialmente observar que por ocasião do julgamento realizado pelo Superior Tribunal de Justiça, no feito submetido à sistemática dos recursos repetitivos, foram estabelecidos parâmetros exaurientes sobre o tema. (STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 1141990 PR 2009/0099809-0)
Um deles consiste no fato de que a Súmula nº 375 do STJ não se aplica à Fraude à Execução Fiscal:
Súmula n. 375 do STJ
O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. (SÚMULA 375, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/03/2009, DJe 30/03/2009)
A Súmula n. 375 do STJ não se aplica às execuções fiscais, diante da existência de disposição específica do artigo 185 do CTN sobre o tema na seara tributária:
Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005.
A constatação acerca da caracterização da fraude à execução fiscal deve ter como premissa o marco temporal da alienação questionada:
a) se alienado o bem até 08/06/2005, faz-se necessária a prévia citação no processo judicial para que reste configurada a fraude em tela;
b) a partir de 09/06/2005 (início da vigência da LC nº 118/05, que alterou a redação do artigo 185 do CTN), a caracterização da fraude à execução requer apenas que a alienação tenha sido efetivada após a inscrição de débito fiscal em dívida ativa (em ambos os casos, vale frisar, desde que não comprovada pelo sujeito passivo a reserva de meios para quitação do débito).
Diante disso, se o bem for alienado após o início da vigência da LC nº 118/05, que alterou a redação do artigo 185 do CTN, trata-se de presunção absoluta de fraude, sem possibilidade, portanto, de se suscitar eventual circunstância de índole subjetiva - como a boa-fé - no intuito de afastar a presunção legal (Lc nº 118 de 09 de Fevereiro de 2005 “Altera e acrescenta dispositivos à Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional, e dispõe sobre a interpretação do inciso I do art. 168 da mesma Lei”).
Verifica-se, portanto, que as condições para que se configure a fraude à execução fiscal são diferentes das condições para que se configure a fraude em outras áreas. De fato, nos termos do art. 185 do Código Tributário Nacional, presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito em dívida ativa.
Dessa forma, foi criada uma presunção absoluta de fraude, e basta para tanto haver inscrição do débito em dívida ativa. A única forma de afastar a presunção de fraude é a reserva, pelo devedor, de bens que assegurem o pagamento da dívida inscrita.
Lei nº 4.320 de 17 de março de 1964 Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias. (Redação dada pelo Decreto Lei nº 1.735, de 1979)
(...)
§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais. (Incluído pelo Decreto Lei nº 1.735, de 1979)
(...)
O simples fato de a oneração ou alienação de bens, rendas ou direitos ocorrer após a inscrição da dívida ativa de crédito tributário, sem reservas de quantia suficiente à quitação do débito, gera presunção de fraude à execução, sendo irrelevante a prova do concilium fraudis, visto que, nessa hipótese, a presunção é jure et de jure, mesmo no caso da existência de sucessivas alienações.
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. ALIENAÇÕES SUCESSIVAS DE IMÓVEL. NEGÓCIO JURÍDICO POSTERIOR AO ADVENTO DA LC N. 118/2005. INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. FRAUDE. PRESUNÇÃO ABSOLUTA. 1. Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC (Enunciado 3 do Plenário do STJ). 2. A Primeira Seção do STJ, no julgamento do REsp 1.141.990/PR, submetido ao rito dos recursos repetitivos (art. 543-C do CPC/1973), fixou o entendimento pela inaplicabilidade da Súmula 375 do STJ no que se refere às execuções fiscais, firmando, ainda a orientação de que, quando o negócio for posterior à modificação do art. 185 do CTN pela LC N. 118/2005, fica configurada fraude à execução fiscal se alienado o bem quando já inscrito o débito tributário em dívida ativa. 3. Hipótese em que o Tribunal de origem, em desconformidade com a orientação desta Corte Superior, afastou a presunção de fraude à execução, apesar da alienação do imóvel, de maneira sucessiva, ter ocorrido posteriormente ao início da vigência da LC n. 118/2005 e quando já inscrito o débito em dívida ativa. 4. Agravo interno desprovido.
(STJ - AgInt no REsp: 1853950 PR 2019/0375028-1, Relator: Ministro GURGEL DE FARIA, Data de Julgamento: 24/08/2020, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2020)
Noutro viés, no que diz respeito à execução civil, cumpre ater-se às palavras da Ministra NANCY ANDRIGHI:
“diante da publicidade do processo, o adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais, que lhe permitam verificar a existência de processos, envolvendo o vendedor, nos quais possa haver constrição judicial (ainda que potencial) sobre o imóvel negociado. Aliás, a apresentação das referidas certidões, no ato da lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis, é obrigatória, ficando, ainda, arquivadas junto ao respectivo Cartório, no original ou em cópias autenticadas.” (cfr. §§ 2.º e 3.º, do art. 1.º, da Lei n.° 7.433/1985) – REsp nº 618625/SC.
Ou seja, mesmo na fraude à execução de caráter civil, abarcada pela Súmula 375, é de suma importância considerar que a prova da má-fé do comprador, segundo o STJ, decorre do simples fato deste não ter se acautelado com a busca das certidões acerca da lisura e solvência do vendedor, ensejando a caracterização de má-fé do comprador.
O art. 185 do CTN por sua vez, na redação dada pela LC 118/2005, não almeja resguardar o direito do terceiro de boa-fé adquirente a título oneroso, mas sim, de proteger o interesse público contra atos de dilapidação patrimonial por parte do devedor, porquanto o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas.
Não obstante, não se pode desconsiderar o fato de que o instituto da fraude à execução é considerado uma espécie de ato atentatório à dignidade da justiça. O artigo 600, do Código de Processo Civil, traz as hipóteses de atos atentatórios à dignidade da justiça:
Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da Justiça o ato do executado que:
I - frauda a execução;
II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos;
III - resiste injustificadamente às ordens judiciais;
IV - intimado, não indica ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores. (CPC, 2015)
Diante da configuração da fraude à execução, outro ponto fundamental é a ineficácia do negócio jurídico em relação ao credor. Por sua vez, as consequências ao comprador são nefastas, pois, diante de tal regra, o imóvel poderá ser sumariamente penhorado em favor do credor para garantia da dívida independentemente de sua boa-fé:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS DE TERCEIRO - EXECUÇÃO FISCAL – ICMS – ALIENAÇÃO DE IMÓVEL – COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - FRAUDE À EXECUÇÃO – OCORRÊNCIA – NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO ANOS APÓS A INSCRIÇÃO DO DÉBITO DA DÍVIDA ATIVA – INEFICÁCIA FRENTE AO CREDOR TRIBUTÁRIO. 1. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. Não se aplica a referida regra na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita (art. 185 CTN). 2. A fraude à execução prevista no artigo 185 do CTN encerra presunção jure et de jure, porquanto componente do elenco das garantias do crédito tributário. Inaplicabilidade da Súmula nº 375 do STJ. Matéria pacificada pelo Colendo STJ pela sistemática de recurso repetitivo quando do julgamento do Tema nº 290. 3. Débito tributário inscrito na dívida ativa e objeto de execução fiscal ajuizada e com penhora efetivada muitos anos antes da realização de negócio jurídico de compromisso de compra e venda de imóvel. Ausência de bens suficientes para garantia da dívida inscrita. Fraude à execução reconhecida. Higidez da penhora. Embargos de terceiro improcedentes. Sentença mantida. Recurso desprovido.
(TJ-SP - APL: 10127212920158260361 SP 1012721-29.2015.8.26.0361, Relator: Décio Notarangeli, Data de Julgamento: 30/01/2019, 9ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/01/2019)
Por fim, vale dizer que, caracterizada a fraude à execução, o ato praticado (compra e venda, doação), embora válido e eficaz entre as partes que o celebraram, não surte qualquer efeito em relação à execução movida, podendo o bem ser penhorado normalmente. É como se, para a execução, a alienação ou a oneração do bem não tivesse ocorrido.
Portanto, ainda que no momento da alienação, inexista penhora ou indisponibilidade recaindo sobre o imóvel, é de suma importância o dever de cautela pelo comprador sobre a conjuntura da situação fiscal, ou mesmo executória, em termos gerais acerca do imóvel e do vendedor, justamente em razão dos riscos para possível penhora ou indisponibilidade futura sobre o imóvel adquirido sob o manto da fraude a execução.
[1] Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2010), advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA ADVOCACIA, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso; Doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba; Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Pós-graduanda em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD); Professora da pós-graduação do curso de Direito Imobiliário, Registral e Notarial do UNICURITIBA, Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA), Professora do Curso de Pós-graduação em Direito Imobiliário Aplicado do Grupo Kroton Educacional, Professora da Pós-graduação da Faculdade Bagozzi e de Direito e Processo do Trabalho e de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos e para a OAB; Pesquisadora do CNPQ pelo UNICURITIBA; Pesquisadora do PRO POLIS do PPGD da UFPR; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018, Vice presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018; Membro da Comissão de Direito Imobiliário e da Construção da OAB/seção Paraná triênio 2013/2015 e 2016/2018; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da Associação Brasileira de Advogados (ABA) Curitiba; Membro da Comissão de Direito à Cidade da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão do Pacto Global da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/seção Paraná; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM; Segunda Secretária da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ); Palestrante, contando com grande experiência e com atuação expressiva nas áreas do Direito Imobiliário, Urbanístico, Civil, Família e do Trabalho, possuindo os livros Reserva Legal: Colisão e Ponderação entre o Direito Adquirido e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e Licenciamento Ambiental Irregularidades e Seus Impactos Socioambientais e vários artigos publicados em periódicos, capítulos em livros e artigos em jornais de grande circulação, colunista dos sites YesMarilia e do SINAP/PR na coluna semanal de Direito Imobiliário e Urbanístico do site e do programa apresentado no canal 5 da NET - CWB TV, na Rádio Blitz.net e na Central TV HD no canal 525 da Net. [2] Advogado pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia - Especializado em Direito Imobiliário Sócio Administrador na Empresa Domínio Legal Soluções Imobiliárias – Especializada em Regularização Fundiária. Bacharel em Direito pelas Faculdades da Industria - FIEP. e-mail: edilson@dcradvocacia.com.br.
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